25 de agosto de 2010

Linguagem escravizada


Hoje participei como comentarista do programa “Antenado”, da Rádio UFSCAR. O convite foi feito para o Intervozes, coletivo do qual eu sou membro, e eu fui destacada para conversar sobre a discriminação na mídia. Lá pelas tantas, o apresentador me perguntou o que eu achava sobre o fato de que o brasileiro, em geral, chega cansado do trabalho e quer ver entretenimento na televisão, quer se divertir. Isto somado ao fato da minha reflexão de ontem sobre a frase-feita de que brasileiro não discute política, me fez pensar em mangas e na escravidão. Explico.
Soube há pouco tempo que a origem da “sabedoria” popular de que não devemos misturar manga com leite na verdade não tem nenhuma verificação científica. A origem disso, antes, é histórica. Foram os senhores de engenho que inventaram a fama da tal indigestão para que os escravos não comessem as fartas mangas maduras das fazendas.
Pois bem, isso me fez pensar no quem mais pode ser considerado como um dito popular mas que na verdade esconde ideologias perigosas e sob a qual vale a gente pensar um pouquinho.
Ontem escrevi sobre como é conveniente para a manutenção das coisas como estão que a gente acredite que política não se discute. Sobre a primeira frase-feita, a de que brasileiro só quer saber de entretenimento, logo não vale a pena se produzir nada um pouco mais pensante também acho bastante perigosa de se acreditar. Primeiro porque qual é o problema de se gostar de entretenimento? O que há de errado em querer se divertir? A questão aqui é o que consideramos diversão? O humor que humilha os homossexuais, que é machista, racista? Percebo que, mesmo na televisão, há vários programas divertidos que informam, que fazem rir, que educam. Quem disse mesmo que pensar é chato?
Outras vezes em que eu percebo a linguagem a serviço da ideologia dominante é quando falamos dos homens. Especialmente as mulheres. Quando dizemos:
      Grosso! Tinha que ser homem.
      Eles não resistem a um rabo de saia.
      Tá tudo errado! Deixa que lavo esta louça.
      Queria que ele abrisse a porta para mim, que fosse mais gentil.
      E ele pagou a conta!
Na verdade o que estamos fazendo, sem mesmo saber, é justificar e reforçar comportamentos masculinos que não nos interessam. Não é natural um homem ser mal-educado ou violento; eles não são animais que não podem evitar o coito no cio; E devem aprender o trabalho doméstico. E nós não somos rosas ou princesas indefesas ou, pior, crianças que não podem se sustentar ou que precisam de mimos mais do que os homens precisam. Nós também somos más e violentas e perversas. Somos humanas.
Por enquanto é isso. Se você lembrar de mais frases feitas, lugares-comum da linguagem, que na verdade escondem ideologias perigosas é só comentar.


2 comentários:

Anônimo disse...

agora vc tá danada, fia! vai se arrepender de ter me autorizado a dar meu pitaco aqui...

primeiro ponto: a necessidade da verificação científica para validar ou não hábitos ou conselhos populares. ok, é uma marca da história ocidental a separação entre crença e ciência - desde a grécia antiga. mas, por outro lado, dani, vc não precisa do argumento "científico" para desmontar uma crença tal qual não coma manga com leite, pois a argumentação histórica basta! assim como, históricamente também podemos validar outras práticas e conselhos das nossas avós ou das "sociedades tribais", simplesmente pelo argumento histórico e cultural. usar a ciência como equivalente à verdade é ser totalitária, quase sem se dar conta!

segundo ponto: podemos pensar juntas nesse tal argumento do brasileiro que chega cansado do trabalho e quer usar a tv (e derivados) como entretenimento. concordo em gênero, número e grau com as questões colocadas sobre o tipo e qualidade do entretenimento. mas, o que acontece aqui - e podemos pensar mais sobre isso juntas - é um algo de alineação do brasileiro com relação à polis (à política). é preciso desenvolver esse ponto de vista.

terceiro ponto: é, chérie! são as mulheres-mães-de-filhos-homens que, sem perceber, os submentem às mesmas ideologias machistas que algumas reclamam... sob o argumento de que, se não ensiná-lo a ser "homem", vai que vira "bicha"... xi... nem quero falar mais disso que me dá uma raiva!

bisous
w

Daniele Ricieri disse...

Sim! É fundamental observarmos isso - o fato de também nós, mulheres, perpetuarmos o machismo. Acho que isso ajuda a sairmos de um lugar de vítima para passarmos a um lugar de reflexão. É neste sentido que entendo, também, o que você fala sobre a alienação política do brasileiro. Penso que é de responsabilidade de nós todos, individualmente até, este problema. No entanto, realmente acredito que temos uma ideologia encravada na linguagem que serve a manutenção da "ordem e dos bons costumes". E estas frases-feitas quando não vistas com um olhar crítico escondem ciladas. Já que acabamos acreditando no que a gente fala sem pensar e naturalizamos comportamentos que talvez nem nos interessam. E, por fim, sobre o discurso científico, concordo totalmente contigo!